Histórico
Desde que tiveram os primeiros contatos com a sociedade envolvente, em meados da década de 1950, os Kayapó Mekrãgnotí e a floresta da qual são interdependentes, estão constantemente ameaçados.
Os 10 anos em que executaram através do Instituto Kabu o Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA) nas TIs Baú e Menkragnoti foram os únicos em que tiveram tranquilidade de poder buscar em seus próprios termos formas de se relacionar com a sociedade envolvente e manter sua cultura e seu modo de vida sem se curvar a aliciadores (madeireiros e garimpeiros ilegais) ou se verem obrigados a travar uma guerra desigual para sobreviver.
Quando a BR-163 foi aberta, na década de 1970, não existia legislação ambiental que assegurasse compensações ou reparações aos indígenas afetados e nem obrigatoriedade de Estudos de Impacto Ambiental.
Concluída em 1976 e sem manutenção nas décadas seguintes, em 1999 a estrada ainda não tinha asfalto nos 893 quilômetros entre o km 101, ao sul de Santarém, e a cidade de Guarantã, no norte de Mato Grosso, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou sua intenção de completar a pavimentação da rodovia. Anúncio que desencadeou uma explosão de grilagem para se aproveitar da valorização das terras do entorno.
Abrindo alas para a soja
Ironicamente, a expansão do agronegócio na Amazônia Legal foi o gatilho para que o agora extinto Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) contratasse um Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), necessário para obter junto ao Ibama o licenciamento ambiental da obra de pavimentação.
A pressão sobre o governo para a conclusão do asfaltamento vinha de produtores de soja em Mato Grosso, preocupados em manter seus preços competitivos no mercado internacional. O asfaltamento da BR-163 no Pará economizaria mil quilômetros de frete: a diferença entre transportar os grãos no porto paulista de Santos e no porto fluvial de Santarém, no Pará;
O EIA/RIMA apontou para a necessidade de um Componente Indígena entre as condicionantes, constatando os impactos negativos da ocupação desordenada sobre os indígenas Mekrãgnotí e sobre os Panará, ao sul do seu território.
Em 2002, mesmo ano em que o EIA/RIMA foi concluído – e 30 anos após o início da abertura da rodovia – a escala dos crimes ambientais na região era assustadora: uma única operação do Ibama fechou 24 madeireiras fantasmas em Novo Progresso e apreendeu 600 toras de mogno em Castelo dos Sonhos, distrito de Altamira, retiradas da TI Menkragnoti.
Atoleiros lendários interrompiam o tráfego por dias com carretas atravessadas na pista durante a estação de chuvas. A rodovia que corta o sudoeste do Pará não trouxe na prometida facilidade de escoamento de produção e o desenvolvimento prometidos, mas criou condições para o florescimento de uma economia baseada na grilagem, na exploração predatória de recursos naturais e na ilegalidade, resultantes da ausência do poder público, da cobiça sobre o ouro no leito dos rios e da abundância de madeiras nobres em florestas públicas.
Bordunas tecnológicas
Para implementarem o seu próprio PBA e se tornarem agentes do processo, os indígenas criaram o Instituto Kabu em 2008. O Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre (DNIT), que substituiu o DNER, transferiu para a Funai a fiscalização das ações e a responsabilidade pelos repasses dos recursos. Por sua vez, a Funai repassou para o Kabu a execução do Plano nas TIs Baú e Menkragnoti e ficou responsável pela execução na TI Panará.
Com o PBA, os Kayapó ganharam um instrumento de defesa que os ajudou a manter a integridade de seus territórios. A partir de seu primeiro ano, em 2010, os Kayapó passaram a contar com análises de imagens de satélites, a serem treinados a usar GPS e poderem identificar invasões e corte de seletivo de madeira durante expedições de monitoramento realizadas por todas as aldeias; puderam realizar sobrevoos para m
onitorar garimpos fora das TIs, que impactam e poluem seus rios; e ampliaram a capacidade de vigiar o território, com a abertura de ramais de acesso às aldeias.
Os antigos assaltos a acampamentos de seringueiros em suas terras, armados de bordunas para expulsá-los, deram lugar à tecnologia geoespacial e monitoramentos onde os invasores são alertados para a ilegalidade de suas ações e convidados a se retirar.
Projetos de comercialização de produtos extrativistas como a castanha do Brasil e o cumaru, e de comércio de artesanato e da arte Kayapó tornaram menos atrativas as constantes ofertas de dinheiro feitas por garimpeiros e madeireiros para ganhar acesso às TIs
O Kabu passou a oferecer um preço superior ao do mercado para a castanha coletada, além do capital de giro para custear os acampamentos dos indígenas nos castanhais, distantes das aldeias e que duram semanas a fio.
Adolescentes indígenas cursam o ensino médio nas cidades mais próximas; a arte Mekrãgnoti passou a ser exposta em feiras com uma loja portátil que viajava pelo país; alpargatas, mochilas e bolsas com grafismos tradicionais são compradas na loja virtual do Kabu por jovens de grandes cidades; o controle de qualidade dos produtos passou a ser rotineiro; jovens fotógrafos e videastas indígenas receberam equipamentos e treinamentos e estão construindo um acervo que documenta o passo a passo das conquistas.
Por nove anos, os Mekrãgnotí usaram o PBA como arma para lutar em pé de igualdade com os invasores e conseguiram proteger a floresta da explosão do desmatamento que se seguiu ao abandono do Plano BR-163 Sustentável. Criado em 2006 durante a gestão da então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, o plano pretendia incorporar gestão e regularização fundiária ao processo de asfaltamento da BR-163, estimulando atividades produtivas sustentáveis e impedindo a invasão de terras públicas através da criação de um corredor de áreas protegidas na região.
A incorporação do BR-163 Sustentável ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), durante a gestão de Dilma Rousseff, determinou o seu fim. O desmatamento que vinha sendo contido na região, voltou a subir. A reforma do Código Florestal, com anistia a desmatadores ilegais, aprovada pelo Congresso em 2012, selou a mudança de ventos. O desmatamento em toda a Amazônia, que vinha caindo desde 2005, passou a avançar continuamente.
Na região, que integra o chamado Arco do Desmatamento, manifestações de desafio ao poder público se intensificaram. Em 2017, um caminhão cegonha com oito viaturas do Ibama foi queimado na BR-163, na altura da Floresta Nacional de Jamanxim. E em 2019, uma ação coordenada de incêndios criminosos, que ficou conhecida como Dia do Fogo, foi realizada em Novo Progresso.
O desmatamento acumulado em um perímetro de 100 quilômetros no entorno das TIs Baú e Menkragnoti chegou a 16,5% em 2020. Mesmo assim, dentro das duas TIs, foi contido em 0,09% no mesmo período, de acordo com os dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).