Primeira cacica do Kabu conta sua história

O avô a preparou para ser chefe porque acreditava que as mulheres seriam as responsáveis pela preservação do território Mebêngokrê-Kayapó. Para Kokoba Mekrãgnotire, "era o meu destino".
Primeira cacica do Kabu conta sua história
08.03

Kokoba Mekrãgnotire é a primeira benjadwyry Nire (cacica na língua Kayapó) do grupo dos Mekrãgnotí – um dos sete que integram a etnia Mebêngôkre-Kayapó. Ela era criança quando a demarcação dos territórios aconteceu e se lembra do avô dizendo na época que uma mulher deveria estar à frente “para proteger o território”.

Seu longo aprendizado na arte da política e da estratégia – os Kayapó são grandes estrategistas – foi iniciado paralelamente à redemocratização do país, à promulgação da Constituição cidadã (no final dos anos 1980) e à homologação das terras do bloco Kayapó, o último grande maciço florestal do leste da Amazônia.

Os Mekrãgnotí vivem nas Terras Indígenas Baú e Menkragnoti no sul do Pará, ocupando a parte oeste do bloco de terras Kayapó. Kokoba é neta do Cacique-Geral Niká-Iti e acredita que a proteção do território foi a razão para que ele tenha decidido treiná-la para ser a primeira benjadwyry nire (pronuncia-se beniadjôre) dos Kayapó da bacia do Xingu. “Foi o meu destino,” acredita.

Ainda bem jovem, ela ganhou a responsabilidade de coordenar as atividades coletivas das mulheres, como a busca de palhas na floresta para que os homens fizessem a cobertura das casas. Começou como coordenadora na aldeia Kubenkokre, onde nasceu. E manteve a função quando o pai se mudou com a família para chefiar a aldeia Menkrãgnotí Velho. A aldeia, aonde só se chega de avião, é histórica: Foi lá que aconteceu o primeiro contato dos Mekrãgnotí com a sociedade envolvente, no final da década de 1950.

Quando o avô envelheceu, começou a enviá-la para representá-lo em reuniões de lideranças, que acontecem na chamada Casa dos Homens, ao centro das aldeias circulares dos Kayapó. “Não houve reação negativa de qualquer pessoa”, afirma. Mas ela procurou o aconselhamento de outra liderança feminina: a guerreira Tuíre, que ficou conhecida como Tuíra quando confrontou um diretor da Eletrobrás em uma reunião também histórica em Altamira, no Pará. Na audiência pública, Tuíre teve participação decisiva ao confrontar um diretor da Eletrobrás. A reunião terminou com a desistência do governo em construir de uma hidrelétrica na volta grande do rio Xingu, que décadas depois retornaria à pauta, rebatizada de Belo Monte.

Tuíre disse a ela que as mulheres são guerreiras “e que quando elas falam, acontece”. E a aconselhou a ser firme e a não ter medo de se posicionar em meio aos homens. Foi com firmeza que ela participou da ocupação da BR-163, em 2020, ao lado das lideranças masculinas do seu povo. Com a mesma firmeza, passou uma descompostura no representante da Funai durante uma reunião virtual: “Há muitas e muitas luas não temos uma fiscalização aqui para combater o garimpo ilegal”, disse.

As duas se encontraram em Brasília, palco das grandes lutas políticas dos indígenas. Na Marcha das Mulheres Indígenas de 2021, a mentora de Kokoba disse à cacica que os Kayapó precisam de mais mulheres na luta. Alguns meses antes, a sobrinha de Tuíre, -Ô-é Kayapó havia se tornado a mais jovem benjadwyry nire do povo, aos 37 anos. Ô-é, do grupo Gorotire chefia a aldeia Mojkarako, na Terra Indígena Kayapó, também no Pará.

Condição feminina

A pioneira Kokoba diz que hoje há mais espaço para as mulheres, mas as duas benjadwyry nire que vieram depois dela em aldeias dos Mekrãgnotí, desistiram do cargo de chefia por problemas conhecidos entre as nire não-indígenas: a dificuldade em viajar e deixar filhos pequenos para trás. Tendo assumido o cargo em 2017, Kokoba já tinha os filhos crescidos e era avó quando tornou-se chefa, em 2017: “Já não preciso me preocupar. Para estar firme, os filhos têm que ter crescido”.

“Desde o tempo dos meus bisavós, a luta sempre foi em defesa da floresta. Bepkun (um chefe importante dos Kayapó), que era meu tio, se desviou da luta, mas com o tempo, voltou para o caminho certo. Se envolveu com o garimpo, pensou melhor e voltou a defender a floresta”. O chefe morreu num acidente na BR-163 juntamente com 10 outras lideranças, em 2004.

Questionada sobre o que ela imagina que será o futuro da luta dos Kayapó pela conservação da floresta e do seu modo de vida, Kokoba responde também com firmeza – e um sorriso franco: “Eu não consigo prever o futuro, mas vejo que hoje estamos divididos. Acho que podem acontecer conflitos com essa desunião. E concorda com Tuíre: mais mulheres em cargos de liderança são necessárias para manter a união e a proteção dos territórios: “É como falei, sendo benjadwyry sim, podemos ficar firmes”.