Antes de retornarem às aldeias, onde também houve várias manifestações nas últimas semanas, as 104 lideranças das três grandes associações Kayapó – Instituto Kabu, Associação Floresta Protegida e Instituto Raoni – divulgaram uma carta aberta repudiando o PL 490, a Instrução Normativa conjunta da Funai e Ibama (01/2021) que atropela o usufruto exclusivo dos indígenas em seu território garantido em cláusula pétrea da Constituição. E ainda o PL 191, que tenta regulamentar o garimpo e a mineração em territórios indígenas e o PL 177, que autoriza o presidente da República a retirar o Brasil da Convenção 169 da OIT – um tratado internacional criado justamente para assegurar o direito de consulta livre, prévia e informada dos indígenas sobre medidas que tenham impacto sobre suas vidas.
As lideranças que assinam a carta representam 60 aldeias e cerca de 6 mil Kayapó e afirmam no Manifesto Levante Pela Terra que nunca vão “desistir de defender os nossos direitos coletivos e territoriais”, lembrando que direitos conquistados não podem ser retirados.
Acampados por 10 dias em Brasília, enfrentando chuva e sol, os líderes explicaram na carta: “Estamos aqui para dizer que a terra indígena é nossa, de cada uma das etnias indígenas do Brasil. Somos contra o golpe que está sendo perpetuado contra os nossos direitos territoriais. Somos contra o genocídio que o governo está levando adiante, ao negligenciar o cuidado com a saúde da população e aproveitando-se dessa vulnerabilidade para ‘passar a boiada’, estimulando a invasão e a destruição de nossas florestas e colocando nossas riquezas à serviço do lucro de seus parceiros destruidores”.
Condenam ainda a violência desproporcional por parte da polícia nos protestos nas imediações e ataques sofridos por deputados após o confronto: “Repudiamos ainda aquelas falas racistas, preconceituosas de parlamentares anti-indígenas que se referiram a nós com termos preconceituosos, acusando-nos de incitar a violência quando na verdade os caciques de nosso povo pediram insistentemente para que a brutalidade policial fosse interrompida”.
Leia aqui o Manifesto na Íntegra:
Manifesto do Povo Mẽbêngôkre-Kayapó no Levante Pela Terra
Nós, 104 lideranças do Povo Mẽbêngôkre-Kayapó representantes de 60 aldeias e cerca de 6 mil indígenas das comunidades associadas ao Instituto Raoni, Instituto Kabu e Associação Floresta Protegida, presentes no Levante pela Terra entre os dias 13 e 24 de Junho de 2020 em Brasília, queremos deixar claro que estamos aqui para lutar e dizer que nunca vamos desistir de defender os nossos direitos coletivos e territoriais, e lembrar que nenhum de nossos direitos conquistados pode regredir. Estamos aqui para dizer que a terra indígena é nossa, de cada uma das etnias indígenas do Brasil. Somos contra o golpe que está sendo perpetuado contra os nossos direitos territoriais. Somos contra o genocídio que o governo está levando adiante, ao negligenciar o cuidado com a saúde da população e aproveitando-se dessa vulnerabilidade para “passar a boiada”, estimulando a invasão e a destruição de nossas florestas e colocando nossas riquezas à serviço do lucro de seus parceiros destruidores. Estamos aqui para dizer que nossa terra e nossos direitos são coletivos e não estão à venda.
Nós somos os povos originários desta terra, o nosso direito ao nosso território é anterior a qualquer governo e ao Estado brasileiro. O direito ao usufruto das riquezas em nossas terras é exclusivamente nosso. A posse de nossas terras é permanente e temos os nossos modos de vida e nossa própria maneira de ocupar tradicionalmente todos os nossos territórios. Isso é reconhecido, tanto pela Constituição Federal como por várias legislações anteriores.
Queremos as nossas terras conservadas e protegidas, sem garimpo, sem invasões nem grilagem, sem atividades produtivas poluidoras e predatórias. O poder público deve fiscalizar as nossas terras, para garantir a sua integridade e nos proteger das ameaças. Queremos nossas atividades produtivas sustentáveis valorizadas e promovidas.
O pacote de medidas legislativas que viemos enfrentar que estão em tramitação atualmente em diferentes instâncias ameaçam os aspectos mais viscerais de nossos direitos fundamentais e territoriais, a nossa autonomia, a nossa cultura, modo de vida e maneira de habitar o território.
Estamos aqui para reafirmar e dizer que não abrimos mão de nosso direito à consulta previsto na Convenção 169 da OIT e incorporado na nossa constituição. O PL 177 é inconstitucional, e viola nosso direito à consulta prévia, livre e informada.
Temos o direito à qualidade de vida, à saúde e ao meio ambiente equilibrado. Qualquer iniciativa que afeta nossas comunidades e territórios, precisa ser devidamente licenciada. E os impactos previstos precisam ser prevenidos, compensados e mitigados. Sofremos graves impactos em nossos territórios por grandes empreendimentos que lamentavelmente se instalam nas proximidades de nossos territórios. O PL 3729/2004, que aguarda tramitação no senado, procura fragilizar e automatizar o processo de licenciamento, reduzindo nossos direitos com medidas administrativas que favorecem os empreendedores e reduzem suas responsabilidades com os direitos humanos e o meio ambiente.
Somos contra o Marco Temporal, seja no contexto do julgamento no STF do caso da Terra Indígena Ibirama Laklanõ ou no caso do PL 490/2007. Em qualquer caso, o que se procura é limitar o direito a demarcação de terra somente para aqueles que tiveram a posse ou estiveram em ação judicial por seus territórios. Essa medida invisibiliza a violência que despejou muitos de nossos parentes e nós mesmos de nossos territórios de ocupação tradicional. O direito à demarcação não pode ter uma limitação temporal, porque nosso direito à terra é originário.
O PL 490/2007 é uma ameaça profunda a nossos nossos direitos territoriais. Todos os povos indígenas do Brasil, inclusive os que tem suas terras demarcadas e homologadas, estão ameaçados. O que está sendo proposto é uma mudança muito profunda no regime jurídico de nossas terras. O PL é uma proposta da bancada ruralista e do governo bolsonaro que procura inviabilizar demarcações, anular as já existentes e liberar nossas terras para empreendimentos predatórios. Procura inclusive reduzir terras demarcadas quando julgar que sua ocupação não é tradicional, atropelando nosso direito à diferença e territorialidade própria. Todos os territórios indígenas conquistados são ocupados de maneira legítima por nossos povos e nenhum pretexto pode limitar o nosso direito à terra.
O PL 191 quer colocar as nossas terras a disposição da exploração de seus recursos minerais, hidrocarbonetos, petróleo, gás natural, aproveitamento hídrico dos rios para geração de energia elétrica e outros grandes empreendimentos predatórios. Tudo isso sem respeitar os nossos direitos fundamentais, o nosso direito ao usufruto exclusivo das riquezas existentes em nossas terras e o direito à consulta livre, prévia e informada.
A Instrução Normativa Conjunta No 1 da Funai e do IBAMA também ataca o nosso direito ao usufruto exclusivo de nossas riquezas e favorece iniciativas produtivas de organizações que se fazem passar por nossas, mas que na verdade são organizações de não indígenas que querem lucrar com a exploração predatória dos recursos de nossos territórios.
Repudiamos veementemente a violência que ocorreu no dia 22 de Junho em meio a nosso protesto do Levante pela Terra no anexo II da Câmara dos Deputados durante a votação na plenária do PL 490/2007. Fomos atacados com bombas de gás e efeito moral, deixando vários feridos e alguns hospitalizados. Nada justifica essa truculência contra os povos indígenas. Não é assim que devemos ser recebidos na casa do povo para participar de uma decisão que diz respeito aos nossos territórios e às nossas vidas e sobre qual deveríamos ter sido consultados. Repudiamos ainda aquelas falas racistas, preconceituosas de parlamentares anti-indígenas que se referiram a nós com termos preconceituosos, acusando-nos de incitar a violência quando na verdade os caciques de nosso povo pediram insistentemente para que a brutalidade policial fosse interrompida.
Precisamos lembrar sempre que nós somos os povos originários desta terra, qualquer instituição que deseje incidir, governar e legislar naquilo que nos diz respeito nos deve consideração. Somos os primeiros brasileiros. Nossos direitos territoriais são anteriores a qualquer governo, a qualquer estado. Os nossos territórios são nossos por direito fundamental e independendem de qualquer reconhecimento formal. A produção mais valiosa da nossa terra é a proliferação da diversidade de vida na natureza, o cuidado do clima, da água e dos animais.
Nossa terra e nossos direitos são coletivos e não estão à venda!